14 de set. de 2011

Uma língua ocidental, o Esperanto?


Por Claude Piron

Se considerarmos o aspecto externo do esperanto, somos tentados a considerá-lo uma língua ocidental. Sua sonoridade lembra o italiano e o vocabulário parece em grande parte de origem latina. Além disso, quem tem a oportunidade de ouvir uma conversa nessa língua não tarda a notar que "sim" é pronunciado yes, como no inglês (mas se escreve "jes"). Tudo parece confirmar o seu caráter ocidental. O ouvinte mais atento que percebe a presença de inúmeras raízes germânicas fica com a mesma impressão: tudo evoca uma língua ocidental aparentemente dotada de um léxico em que, como no inglês, encontram-se lado a lado as contribuições latinas e germânicas.

Alguns, de formação clássica, situarão o esperanto um pouco mais para o Oriente, ao reconhecerem traços do grego: a conjunção "e" se escreve "kaj" (pronuncia-se cai) e é uma perfeita cópia do grego antigo, "kai". Os plurais são explicitamente tomados à língua de Homero (em grego, "parallelos", uma linha paralela e "paralleloi", linhas paralelas; em esperanto, "paralelo", "paraleloj", onde a terminação -oj se pronuncia oi, como na pronúncia clássica do grego).

O esperanto escrito parece menos ocidental: a presença de consoantes com circunflexo, os "j" seguindo uma vogal no final da palavra, grupos consonantais como "kv" lembram o aspecto visual do esloveno e do croata. Quem aposta numa influência eslava não se engana. O esperanto nasceu na Europa oriental. Sua sintaxe, vários pontos da gramática, muitas expressões, o estilo mais freqüente testemunham efetivamente um importante substrato eslavo. Da mesma forma a sua semântica. Se a palavra "plena" foi tomada das línguas latinas, seu campo semântico não é o do nosso "pleno", mas do russo "polnyj", derivado do velho radical indoeuropeu "pln". Em nenhuma língua românica se fala de um "dicionário pleno", mas sim de um "dicionário completo". Em esperanto "plena vortaro" é a transposição exata do russo "polnyj slovar", até no sufixo (em russo, "slovo", palavra e "slovar", dicionário; em esperanto, "vorto", palavra e "vortaro", dicionário).

O esperanto tem pelo menos alguma coisa em comum com as línguas semíticas? Na forma, não, mas no espírito sim. Como no árabe e no hebraico, o esperanto forma o essencial de seu léxico através da derivação a partir de raízes invariáveis. Bem, nas línguas semíticas as raízes se compõem quase sempre de três consoantes e a derivação se faz freqüentemente com a inserção de vogais entre essas consoantes, enquanto que em esperanto as raízes não seguem um esquema fixo e a derivação se dá exclusivamente pelo acréscimo de elementos no início ou no final da raiz. A versão em esperanto da bíblia hebraica contém mais ou menos o mesmo número de raízes que o original, o que a distingue claramente das traduções em línguas ocidentais, obrigadas a recorrer a muitas palavras cuja derivação não é transparente, ao contrário da derivação do esperanto e do hebraico.

Se em nossa marcha ao Oriente nós passarmos do árabe ao persa, nós sairemos de uma língua com gramática complicada, cheia de exceções, para uma língua em grande parte regular. Em árabe, para formar o plural, é comum transformar totalmente o interior da palavra: "kitâb", livro, no plural se torna "kutub". O persa, que tomou muitas palavras do árabe, não pegou emprestado os plurais irregulares. O plural se forma com a adição da terminação -hâ. O plural de "kitâb" não precisa ser memorizado à parte. Será "kitâbhâ". O esperanto apresenta a mesma simplicidade. Basta uma fração de segundo para aprender a formar o plural de todos os substantivos, pois trata-se simplesmente de guardar que ele é formado pelo acréscimo de um "j" - pronunciado, lembre-se, como a letra i em oi. Que diferença em comparação com línguas como o alemão, o árabe, nas quais é preciso praticamente aprender o plural em paralelo a cada substantivo comum. E mesmo em comparação com o inglês, mais regular, mas que mesmo assim apresenta um certo número de exceções: "woman" (mulher), "child" (criança), "foot" (pé), "mouse" (camundongo), "sheep" (carneiro) e muitas outras palavras não seguem a regra geral pela qual forma-se o plural acrescentando-se um -s. Diz-se "women", "children", "feet", "mice", "sheep"...

A maioria dos ocidentais não imagina que existam línguas tão coerentes que a própria noção de verbo irregular, plural excepcional, derivação aberrante sejam simplesmente impensáveis. Dentre essas línguas estão o chinês, o vietnamita... e o esperanto. Essas três línguas têm em comum, diferentemente de todas as línguas indoeuropéias, o fato de serem compostas por elementos rigorosamente invariáveis e que se combinam entre si de maneira ilimitada. Para quem fala uma dessas línguas, a idéia de que "primeiro" não deriva da palavra "um" ou que para designar as diversas modulações da primeira pessoa do singular é preciso aprender toda uma série de palavras como "eu", "me", "mim", "meu", "minha", "migo", é um fato bizarro e incompreensível. Dá para se entender tão bem sem toda essa confusão! Em chinês, "meu", "minha", "meus" se diz simplesmente "wode", que é a forma adjetiva (-de) de "wo", eu. O esperanto deriva essas palavras da mesma maneira, acrescentando a marca do adjetivo (-a) à palavra "mi", eu. Assim, realidades paralelas exprimem-se nessas duas línguas com formas paralelas, o que não se encontra em nenhuma língua ocidental. Em "eu tomo a sua, você toma a minha", a reciprocidade dos gestos se marca na forma tão bem em chinês (wo na nide, ni na wode) quanto em esperanto (mi prenas vian, vi prenas mian). Em francês (e português), por outro lado, a relação entre "eu" e "minha" não tem nada de transparente, "sua" deve ser aprendido independentemente de "você", e não se pode formular a idéia corretamente sem haver memorizado um conjugação: "tomo" na primeira frase deve ceder lugar a "toma" na segunda. Os pontos a memorizar para se exprimir convenientmente são sempre mais numerosos quando se trata de uma língua ocidental.

Uma mesma semelhança estrutural se encontra entre o chinês e o esperanto na formação de palavras. Em francês, como no inglês, é preciso aprender separadamente palavras como "compatriota", "correligionário", "condiscípulo" e não dá para expressar em uma só palavra conceitos como "pessoa da mesma raça" ou "alguém que fala a mesma língua". Em chinês, basta conhecer a estrutura e a palavra fundamental. Se já se sabe falar "país", automaticamente é possível dizer "compatriota". Da mesma forma em esperanto: para formar compatriota, "samlandano", correligionário, "samreligiano", condiscípulo, "samklasano", pessoa da mesma raça, "samrasano", pessoa que fala a mesma língua, "samlingvano", basta conhecer a estrutura "sam___ano" e colocar a raiz correspondente. Da mesma forma, o chinês que aprende o português, o inglês ou o italiano deve memorizar como uma entidade totalmente nova a palavra "estrangeiro" (foreigner, straniero). Se ele aprende esperanto, basta traduzir parte por parte (monema por monema, diria um lingüista) os três elementos que compõem essa palavra em sua língua materna: "waiguoren", estrangeiro, se compõe de "wai", fora (em esperanto, "ekster"), de "guo", país (em esperanto, "land-") et de "ren" (ser humano, que corresponde em esperanto a "ano", pessoa que pertence a, membro de, vindo de...): estrangeiro em esperanto se diz "eksterlandano". Outro exemplo: o aluno chinês que se esforça para adquirir uma língua ocidental deve memorizar toda uma série de nomes de animais, enquanto que em sua língua basta usar a derivação. O fato de que aprendeu "cavalo" não serve para comunicar com precisão os conceitos de "égua", "potro" ou "garanhão"; "boi" não tem qualquer relação com "vaca", "bezerro" e "touro". Em chinês, essas palavras se formam de um modo regular. São respectivamente, "ma", "muma", "xiaoma" e "gongma"; "niu", "muniu", "xiaoniu" e "gongniu". O sistema não é menos regular em esperanto. A relação é a mesma, de um lado, entre "ĉevalo" (o c com circunflexo se pronuncia "tch") e "ĉevalino", "ĉevalido", "virĉevalo", e de outro "bovo" e "bovino", "bovido", "virbovo".

As pessoas que criticam o esperanto por ser muito ocidental não prestam atenção em dois aspectos importantes da questão. Em primeiro lugar, julgam de uma forma puramente superficial, sem entrar na análise lingüística, que pode revelar, em profundidade, até que ponto ela é diferente do que parece à primeira vista. Em segundo lugar, esquecem que uma língua de comunicação internacional é totalmente necessária. Em que língua as pessoas tentam "se virar", na prática, quando não há uma língua comum? Em inglês! Ora, essa é uma língua muito mais ocidental que o esperanto e muito mais difícil de se adquirir para a maior parte dos habitantes do nosso planeta. Nenhuma língua poderia colocar todos os povos em igualdade. Mas de todas as que existem e são utilizadas na prática, o esperanto é a que mais se aproxima desse ideal. Ao cabo de 2 mil horas de inglês (5 horas por semana durante 10 anos), o japonês e o chinês médio é incapaz de se expressar de um modo realmente operacional na língua de Shakespeare ou do Wall Street Journal, eles não passam do estágio de balbuciar frases. Com 220 horas de esperanto, em média, eles podem realmente comunicar, sentindo-se bem à vontade. Esta diferença não chega a supreender quem estuda as estruturas lingüísticas das diversas línguas.

Se a gente quer jogar limpo e continuar sendo objetivo, para criticar o esperanto é preciso primeiro haver feito uma análise suficientemente profunda e ter realizado comparações com o inglês e com as línguas maternas dos povos dos quais se ouve a defesa de interesses. Na democracia, todo acusado é considerado inocente até prova em contrário. Estará de acordo com as tradições européias aplicar esse princípio a toda decisão sobre o esperanto e reservar seu julgamento até que tenham sido estudados os fatos. Nenhum lingüista sério, nenhum jornalista, nenhum político ousaria fazer juízo sobre o tagalog ou o malaio sem estar plenamente documentado sobre essas línguas. Não há qualquer motivo para fugir a essa regra em se tratando do esperanto.

traduzido pelo Kultura Centro de Esperanto-Campinas
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